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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Confusão de semiologias

Em memória de José Honório.

Quando ainda morava no Brasil um belo dia decidi não ser mais empregado de ninguém. Inclusive, deixei de dar aulas na universidade. Uma avalanche de razões levou-me a isso. Pouco importam agora. Dediquei-me a prestar somente consultoria, porém, com o firme propósito de só fazê-lo para quem eu simpatizasse e não tivesse a menor dúvida de ser decente.

Defino decente: indivíduo ou organização cuja conduta e princípios se pautassem no respeito ao ser humano, independente de raça, credo ou status social. Todas as ações, atitudes ou procedimentos a serem executados deveriam ser pautadas no estrito sentido da honra, moral e ética e nestes três atributos permanecerem até ao final.

Meu irmão chamou-me de utópico. Não lhe tirei a razão. De louco também. Entretanto, fingi não ouvir para evitar outra discussão que terminaria fatalmente na política; como o PSBD era uma corja de corruptos e o PT uma enorme quadrilha de bandidos. Provavelmente depois ficaríamos semanas sem nos falarmos. Era habitual.

No Brasil, se um quiser ter certa independência financeira, ou entra no jogo mesquinho das empresas, subvertendo-se ao jeitinho nacional, tornando-se apenas mais outro a afogar-se na lama da mediocridade e nos carnês do crediário, ou... cai fora. Existe obviamente a possibilidade de ganhar na mega-sena. Eu caí fora.

No princípio foi bastante difícil. Não era mais jovem e os quarenta corriam apressados. Com dois filhos na idade aborrecente, mais parecendo aspiradores de dinheiro, um casal de empregados há anos comigo e dois cachorros lindos, a poupança escorreu-me entre os dedos; as poucas aplicações financeiras foram atrás. Dois anos depois beirava a insolvência cívica.

A ruína já batia ao portão, desesperada, ansiosa, tal qual testemunha de Jeová querendo entrar para convencer-me que o fim do mundo se aproximava e a salvação era o Senhor. Dentro de casa, por entre as frestas dos cortinados, via-a com aqueles cabelos longos, escorridos, saia travada até aos pés e rosto mal tratado. Imagens miseráveis da minha infância no pezinho de chão lá em Minas Gerais... tudo se confundia e misturava à figura esquálida na soleira da porta. Mas...

Desde criança desconfio que alguém lá no céu sofre de paixonite aguda por mim. Não importa o quão apático me mostre ou emburrado ou quantas vezes racionalize que a distância torna esse amor impossível, seja lá quem for sempre dá um jeito de se fazer notar.

Com bastante sutileza e perspicácia devo dizer.

Creio que a minha indiferença impede que se mostre ao natural. Acho justo. De certa forma confortável. Contudo, ao longo dos anos, além desse amor incondicional e platônico reparei que gosta de envolver-me em mistérios. E como gosta. Por despeito talvez. Que sei eu? Logo para cima de mim que sou pão-pão, queijo-queijo? Mas entendo. Até agradeço. Se a ajuda fosse escancarada poderia acomodar-me. Possivelmente, inscrever-me-ia no Bolsa Família do governo. Talvez me afiliasse ao MST. De boné vermelho na cabeça, com a boniteza de palavras que sei dizer, comida, amor e dinheiro não faltariam.

Portanto, por portas e travessas chegou aos meus ouvidos que um grande empresário não se acertava com nenhuma empresa de consultoria, algumas de linhagem real. Eu não o conhecia, mas ouvira falar dele. Quem me vendeu o peixe tampouco sabia grandes detalhes.

Naquele momento não me interessei muito. Quando tomei a decisão de ser consultor havia jurado também jamais voltar a trabalhar para uma empresa brasileira. Fosse ela qual fosse. Experiências passadas causavam-me urticária só de pensar na possibilidade.

Contudo, não sei explicar bem, o contexto da informação deixou-me com a pulga atrás da orelha. E não foi tanto pelo desespero financeiro daqueles dias. A ojeriza que tenho a empresas brasileiras vai além do discernimento. Recordo que atribui essa “pulga” a uma daquelas ajudas celestiais sutis... Que não havia pedido, fique bem claro, mas costumava e costumo aceitar para não parecer grosseiro.

O tal empresário era homem pra lá de abastado, dono de grande corporação. Não um qualquer; um desses que do nada ganhou rios de dinheiro vendendo boi sem vacinas ou plantando cana-de-açúcar, cujas empresas são levadas a trancos e barrancos no estilo quitandeiro. O indivíduo não era um comerciante boçal, mas sujeito educado, cortês, com MBA de Harvard e bom gosto no vestir.

No contraponto, eu conhecia algumas das Consultorias de sangue azul desprezadas. Ora se não! Por anos pude observar como operavam. Sabia à ciência certa que essa gente possui uma capacidade camaleônica extraordinária. Sem falar da enormidade de recursos e mentes brilhantes à disposição. Autênticos fagócitos. Nacionais e internacionais. Portanto não fazia sentido tanta incompatibilidade. Algo estava errado...

Ou o tal empresário era um doido varrido ou... Este “ou” virou um enigma indecifrável na minha cabeça. Um mistério. Mais outro. Por duas semanas, como diria o matuto, pelejei para encontrar resposta lógica. Não consegui. E pior... eu me considerava um sujeito inteligente. Inteligente mas pouco esperto. Enfim...

Durante esses quinze dias, ao fazer a barba pela manhã, diante do espelho só me aparecia o rosto de um imbecil... Havia embarcado num sonho impossível, apesar de conhecer bem a realidade empresarial. Com quem eu queria trabalhar simplesmente não existia. Todos os contatos aos quais tive acesso não gostei da metade. A outra metade certamente não gostou de mim.

Diante desta nova oportunidade, que não passava de uma ranhura estreita para dar azo à imaginação, cheguei a considerar seriamente em deixar de lado a habitual fatuidade e negociar com quem lá no céu tanto me quer bem. Só por essa vez. Além da dica dada... pelo menos... podia contar-me o resto... só para me preparar, né?

Mas a quem deveria dirigir-me lá no céu? Não faço a menor idéia. No meio daquele mundaréu de nuvens e ventos gelados onde procurar? Nem sei como chegar... Mesmo que chegasse, pois quem tem boca vai a Roma, no balcão de informações por quem perguntaria? Imaginaram o mico? Eu diante da recepcionista tiritando de frio?:

G-gostaria de f-falar co-com quem m-me ama... p-por favor!

– Quem?

– Quem m-me ama. T-tem uma pessoa a-aqui no céu q-que m-me ama... m-me protege... con-conserta as... as minhas borradas...

– Pare de gaguejar, homem. Você está no céu e não no inferno... Não precisa ter medo.

– É medo, não. D-desculpe. D-deve ser da altitude... e-está f-frio, né? – Tento sorrir mas está frio pra burro.

– Aqui todos amam muita gente... – a recepcionista suspira com ar aborrecido, misto de desdém e decepção: – ... não fazemos outra coisa senão consertar as cagadas que vocês fazem lá em baixo. Qual é o nome?

D-Deus?... – arrisco timidamente.

– Tem hora marcada?

N-não... Mas E-Ele me co-conhece... acho.

– Se não tem hora marcada, ligue no atendimento automático e aperte a tecla 3.

S-senhora... eu vim de longe... s-será que e-eu poderia e-então f-falar com o filho d-de D-Dele...

– Hoje não! Ele está de licença médica. Foi retirar um espinho da cabeça.

Ainda ameaço abrir a boca para sugerir outro nome mas a expressão furiosa da recepcionista é desalentadora. Fico estático. Pelo frio. De repente sinto o bafo da recepcionista:

– Helloooo? – o cheiro a uvas e mel é notável. – Atendimento automático... Entendeu? Tecla 3. Entendeu? Quem é o PRÓXIMO?

Eu já havia decidido telefonar para o empresário. Pretendia usar metade das palavras do dicionário para convencê-lo de que era o consultor certo para ajudá-lo onde outros, mais brilhantes e capacitados, haviam falhado. Empáfia não me faltava. Só dinheiro; caso aceitasse receber-me.

Não tinha a menor idéia de como viajaria para encontrá-lo. Em casa a luz estava a ponto de ser cortada. O telefone idem. Sanduíche e sopa Knorr eram o cardápio do dia, da semana, do mês... O carro só saía da garagem com bom tempo e para uma emergência. Se o assunto era urgente e chovia, deixava de ser urgente.

Não recordo se comentei em posts anteriores que tenho um par de Golden Retrievers inteligentíssimos. Até falam. Não escrevem porque insistem em manter as unhas compridas. Coisas da moda caninha. Hoje já estão velhinhos, mas oito anos atrás estavam em plena mocidade.

Pois bem, entre as suas muitas qualidades, um deles, o Ramsés, o outro se chama Imhotep, tem a mania, até hoje, de pegar a minha carteira de cima da cômoda e levá-la para a casinha dele. Lá se entretém por horas a tirar tudo para fora. Dinheiro, cartões, identidade, até a foto dos meus filhos. O curioso da situação é que não rasga nada. Nem morde. Como consegue é segredo que ele não revela. Enche tudo de baba e eu que me vire depois para limpar enquanto ele me olha arfante, com os olhos radiantes e um palmo de língua balançando.

Na última manhã desses 15 dias, depois de ver mais uma vez o imbecil no espelho e esconder-me da ruína, sentado num dos sofás da sala, Ramsés chegou-se a mim todo lampeiro com um cartão na boca. Gentilmente depositou-o todo babado em cima do meu colo. Às vezes ele tem esse gesto de ternura. É um doce.

Mal pude acreditar quando vi o pedaço de plástico. Havia-me esquecido completamente da sua existência. Era o meu cartão de milhagem da Varig. A empresa ainda existia, mas os malditos petistas, recém empossados no governo, rastejavam-se pelos corredores da corrupção para embolsarem milhões numa negociata que pôs fim à que foi, na minha opinião, a melhor companhia aérea.

Imediatamente liguei para a central de atendimento e descobri que tinha milhas para dar a volta ao mundo. De graça. Como pude esquecer?

Vou poupar o leitor da emoção e dos abraços dados ao Ramsés. Também não telefonei para o tal empresário. Era quase hora do almoço, mas decidi que o caldo Knorr poderia cair-me mal. Vesti-me e corri desembestado para o aeroporto de Guarulhos.

Juliana, recordo-me até hoje, foi a funcionária da Varig encarregada de receber o meu cartão, ainda meio babado, que limpei constrangido na manga do paletó. Ela mostrou cara de asco. Não a culpo. Hesitou em pegá-lo, mas ofereci-lhe o meu sorriso mais cândido. – “... Desculpe... Ter filhos pequenos às vezes acontece isto...” – disse-lhe. Ela era mãe de três. Entendeu perfeitamente. Foi pra lá de simpática. Ofereceu-se até para passar uma aguinha no plástico.

Duas horas depois eu voava.

A noite aproximava-se a passos largos quando o avião aterrissou no Aeroporto Internacional de Campo Grande. Dispunha de quase quatro horas antes voltar para São Paulo. Dinheiro para hotel só na imaginação. Para o lanche, apenas o cheiro. Com o taxista pechinchei quase às lágrimas para levar-me, esperar e trazer de volta. O tal empresário vivia fora da cidade.

Se a visita surpresa desse errado bastaria o enxovalho de ser escorraçado. Não queria passar também pela humilhação de pedir para chamar um táxi, cuja corrida certamente não teria como pagar. O meu celular estava descansando. Só recebia. Danado!

Vou pular também o drama do taxista que escutei até à mansão. Que alma bondosa. Sofrida. Meia hora de viagem ao lado da tragédia, digo, ao lado de José Honório. Mentalmente recusava-me a imaginar as degraças da volta. Quem gosta de mim lá no céu às vezes proporciona-me esses momentos entranháveis. Provavelmente para se aliviar da quantidade de lamúrias que escuta. Não me importo. Desde pequeno acostumei-me a que as pessoas vejam as minhas orelhas como penicos à disposição. Meu avô dizia que escutar era uma virtude. Nessa viagem descobri que era mesmo.

Quando o táxi parou diante do portão da residência do empresário o breu da noite cobriu-me de alto a baixo. Um monte de cachorros começou a latir mal cheguei perto da parede de ferro. Aquilo não era um portão. Por mais que o esmurrasse duvidava que alguém escutasse. De fora não dava para ver o interior da propriedade. Três ou quatro metros de muro, à esquerda e à direita, perdiam-se pela longitude das trevas. Aquilo também não era uma casa. Era uma fortaleza. Pedi ao taxista para buzinar.

De repente, dois clarões puseram-me no centro de uma redoma resplandecente. Fiquei cego. Recordo que nesse instante, fosse pelo susto ou pelo nervosismo, só pensei como devia ser cara a conta de luz daquela casa.

Ao ouvir uma voz perguntar o que eu desejava, a custo consegui vislumbrar um rosto feio por trás de um pequeno retângulo na muralha de ferro. A partir daí tudo foi bem mais fácil do que imaginei.

Obviamente não vou aqui descrever a tática infalível que uso para ser recebido fora de horas e sem ser esperado. Especialmente por milionários cercados de guarda-costas. O tal empresário havia começado a jantar. Eu me prezo por ser um homem educado. Esperei. Sentado dentro do táxi. Tinha menos de três horas para voltar ao aeroporto.

Mal me sentei no carro José Honório decidiu que eu queria continuar a ouvir o seu rosário de penas. O tempo de viagem fora escasso. Não lhe dera tempo de narrar a saga dos filhos. Oito vivos e um morto, mas pretendia chegar a onze. O seu time de futebol. Todos da mesma mulher. E caso ela morresse já tinha outra em vista. Felizmente no sexto Honorinho o guarda do portão berrou para que eu entrasse. A pé, obviamente. A minha tática havia funcionado. Exultei. Por dentro estremeci. Tinha menos de duas horas para voltar ao aeroporto.

Nem me importei em ser revistado. Àquela hora da noite eu não teria deixado por menos. Mas estava preparado para tudo... exceto para o esplendor e luxo que apareceram diante dos meus olhos.

Numa avaliação a olho nu, baseada na vista topográfica desde as altas torres da mansão, em estilo italiano neoclássico, a propriedade possui cerca de doze mil metros quadrados de terreno acidentado. O imóvel em si, erguido no platô central mais elevado, parecia mergulhado no silêncio, porém iluminado. A Lua preguiçosa, mas afoita, rutilava vez por outra as sombras dispersas na paisagem.

O guarda convidou-me a subir num desses carrinhos usados nos campos golfe. Após dois ou três minutos de viagem, por uma alameda de saibro ladeada de flores, surgiu diante de mim o frontispício da mansão. As duas portas colossais, em madeira de peroba-rosa, no topo da escalinata que subia à entrada, mostravam-se entreabertas. Era possível admirar a beleza das três iniciais do nome do proprietário entrelaçadas, esculpidas à mão. O entalhe centrado ocupava um terço da superfície das portas. Os tons amarelados das paredes exteriores resplandeciam como placas de ouro sob o efeito dos holofotes fincados no meio de canteiros de rosas, petúnias e muitas plantas tropicais. Sob o reflexo das luzes e o cruze das sombras, a escadaria de mármore branco, uma sucessão de vinte e dois enormes patamares sobrepostos, assemelhava-se a uma longa e esplendorosa grinalda de prata.

Um detalhe assaz simbólico dividia esse mar de flores da estrutura do palacete: – toda a imponência arquitetônica soerguia-se a partir de um cinturão verde, compacto, formado por um aglomerado de plantas comigo-ninguém-pode.

Fui recebido aos pés da escadaria. O dono da mansão estava à minha espera. Senti-me o máximo.

Sete Filas brasileiros e um Setter, todos absolutamente ameaçadores, cercaram-me, cheiraram e roçaram-se nas minhas pernas até se fartarem. O empresário convidou-me a caminhar alguns passos até debaixo de um caramanchão coberto de flores e trepadeiras. Em duas das cadeiras à volta da mesa nos sentamos.

Os Filas continuaram ao meu redor e passaram a se revezar nas cheiradas. Quando embarquei para São Paulo, ao passar pela policial ao lado do detector de metais, ela olhou-me feio e torceu o nariz. Ao chegar em casa Imhotep e Ramsés rosnaram ameaçadores como se intruso eu fosse. Magoei. Mas acho que o fizeram por ciúmes. Depois que tomei banho deram-se conta da grosseria. Os dois, felizes, babados e de rabo abanando, pularam em mim com as patas cheias de terra e me presentearam com sendas lambidas. Voltei a tomar banho.

– Vejo que gosta de cachorros... – disse-me o empresário enquanto os filas me cheiravam.

– É verdade. Tenho dois Golden Retrievers... – respondi, tentando dominar o pavor que uma daquelas fauces abocanhasse a minha perna ou algo mais central. Dois deles insistiam em cheirar o que não deviam. Que mania pervertida tem os cachorros.

Para mostrar que não tinha medo ofereci a mão a um dos Filas que lambeu a gosto e a ensopou de baba. Não tive outro remédio senão limpá-la no pêlo do animal. Ele gostou. Os outros quiseram também e a cena se repetiu. O empresário riu. Riu com gosto. Ali estava eu pagando outro mico.

– Como é o nome dele? – Perguntei apontando para um dos Filas, o único cor de mel. Tentava desesperadamente fazer o homem parar de rir.

– Chama-se ACM...

– ACM? O que significa? – Sou muito curioso.

– Antônio Carlos Magalhães. – respondeu-me com um sorriso maroto nos lábios.

– O Senador? Perguntei estupefato.

– Esse mesmo. – O sorriso enigmático permanecia.

– Ah... Interessante. – Foi tudo o que me ocorreu dizer.

– Olha... este marrom aqui é o Quércia. – disse-me, apontando para outro dos Filas que se cansara de me cheirar e havia decidido sentar-se voltado para mim com a bocarra aberta e dois palmos de língua pendurados, pingando baba a conta-gotas. – Esse outro marrom ali, é o Jereissati; o preto se chama Tuma... Aquela é uma cadela... se chama Ideli Salvatti. É castrada. Tive de castrá-la depois que ela deu pro Setter que é da minha filha. Aí nasceu esse aí, meio vermelho. O nome dele é Lula. Não é Fila puro, mas é o que eu mais gosto. Vai comigo para todos os lugares e me obedece em tudo. Aquele preto se chama Collor, só tem um ano... Lamentavelmente vou ter de sacrificá-lo. Morde todo o mundo... Semana passada atacou o filho de um dos empregados e quase o matou. O outro, do lado dele, é o Suplicy... É um bunda mole...

Foi a minha vez de rir. Discretamente, claro. Dei uma boa olhada para o Collor e me lembrei de um outro Collor, só que de duas patas. Esse sim me mordeu feio, o filho da puta.

– Mas todos têm nomes de políticos? – observei como se não entendesse o significado. Não entendia.

– Meu caro Félix, – disse-me quase em tom professoral, – Cachorros são como políticos. É só alimentá-los bem que eles te obedecem direitinho...

– Entendo!...

Quando não sei o que dizer essa é a única palavra que me ocorre, embora para mim ali houvesse uma confusão de semiologias. Na minha opinião, os animais estavam sendo achincalhados ao receberem esses nomes. Não os políticos, como insinuava aquele grande empresário. Grande empresário? Ora, ora. Pensei pra mim. Não passa de outro quitandeiro que teve sorte na vida.

De repente entendi porque tantas empresas de consultoria, extremamente hábeis, capazes e conceituadas haviam se desentendido com ele. Olhei para o meu relógio e vi que tinha exatamente quarenta e cinco minutos para chegar até ao aeroporto... e ainda não dissera ao que viera. Também não ia ser preciso. Detesto pessoas que maltratam animais. Seja como for. Especialmente cachorros. Inclusive dando-lhes nomes de políticos.

– Você presta consultoria em que área? – Perguntou; talvez porque fiquei demasiado tempo em silêncio.

– Em todas! – retruquei seco, no limiar da grosseria, pronto para levantar-me e sair dali. Porém, rapidamente assumi a máscara profissional e acrescentei: – desculpe tê-lo incomodado em sua casa a estas horas. O assunto profissional que me fez chegar aqui não é tão urgente. Talvez, se me permitir, eu possa ligar para a sua secretária e marcar uma hora à sua conveniência... – o escárnio chegou a ser palpável.

O empresário deixou de sorrir. O semblante fechara-se e o olhar hirto sequer se desviou um milímetro dos meus olhos.

– O que o fez ficar tão aborrecido? – Perguntou.

Por um segundo ou dois mantive silêncio. Tampouco desviei o olhar dele.

– Quer mesmo saber doutô? – O doutô soou com o sarcasmo a escorrer-me pelos cantos da boca.

– Se não quisesse não perguntava. – retrucou a meia voz como se pesasse cada palavra. – Você me pareceu um sujeito simpático... De um momento para o outro reparei que ficou incomodado...

– Com o respeito que o senhor merece... – interrompi-o – ... e pela bondade que teve em me receber a uma hora tão tardia, não quero ser indelicado a ponto de chamá-lo de hipócrita dentro da sua própria casa...

– Hipócrita? Como se atreve? – levantou-se tão rápido que a cadeira tombou.

– Não me atrevo. – respondi, pondo-me em pé também. – Por isso peço que me desculpe se me retirar imediatamente sem esperar que um dos seus guardas me acompanhe...

– Sente-se!

– Lamento! Tenho um táxi lá fora me esperando e se não sair imediatamente vou perder o vôo de regresso a S. Paulo... Ademais não tenho reserva em hotel, portanto não tenho onde ficar esta noite...

– Isso não é problema! Se for preciso dorme aqui em casa e pela manhã o meu avião leva-o a S. Paulo... Quero que me explique esse seu atrevimento de me chamar de hipócrita em minha própria casa...

– Na minha mente já se perfilou uma seleção de adjetivos adicionais para acrescentar àquele que mencionei circunstancialmente... – disse irônico, – ...sem que fosse minha intenção ofendê-lo...

– Mas ofendeu... Você veio aqui pra me sacanear ou quê? – Ficou bravo. Pensei até que sacaria alguma pistola do bolso e me fuzilaria ali mesmo.

– Reitero novamente as minhas desculpas se o ofendi e me explico. – Voltei a sentar-me e o ACM resolveu descansar a queixada em cima da minha perna. Não me importei. Até foi bom. Acariciar aquela cabeçorra enorme ajudou a acalmar-me.

As explicações transformaram-se em confronto de idéias que se estenderam até à madrugada. Quando atirei à mesa a confusão de semiologias, os ânimos acirraram-se. Foi quando descobri que a esposa e filhos tinham a mesma opinião que eu em relação aos nomes dos cachorros. Descobri também que fumávamos a mesma marca de charutos. Foi o ponto alto do encontro.

Uma ceia leve foi servida à base de pitus e salada verde. O pão com manteiga e o café de S. Paulo há muito haviam desaparecido. Recordo que senti um certo ranger na barriga quando o primeiro camarão desceu e desgrudou a pele da frente da de trás. Logo depois chegaram fatias finas de carne assada com purê. As melhores que comi na minha vida. O par de cervejas que tomamos não poderia estar mais gelado. Pelo resto da noite entupimo-nos de café. Café colombiano. Terminado o banquete lamentei pela empregada que nos serviu. Pobrezinha. Lá pelas tantas a cara de sono dela dava pena.

Passava das três e meia da madrugada quando o empresário me levou até a um quarto enorme, magnificamente mobiliado, onde a peça de destaque era uma cama com dossel. Nunca havia dormido numa cama com dossel. O banheiro era um exagero. Havia espaço para dar um baile lá dentro. Pena que sou todo cheio de esquisitices e não aproveitei a enorme yacuzzi. Tomei apenas um banho de chuveiro e dormi com a alma em festa.

Pela manhã o empresário perguntou-me se fazia falta assinarmos um contrato para que eu começasse a trabalhar para ele. Disse-lhe que não. E não sei porque o disse. Logo eu que não faço nada sem ter um contrato assinado. Creio que foi mais outra inspiração lá do céu. Anos depois ele confidenciou-me que se tivesse insistido no contrato não teria havido trabalho.

Naquela manhã recordo que pedi à empregada que nos servia o desjejum a gentileza de trazer-me uma folha de papel. Nela escrevi os honorários que cobraria para prestar serviços e pedi ao empresário que assinasse. Quando lhe entreguei o papel ele fechou um olho, depois o outro, mirou-me de soslaio e vociferou:

– Isto é um roubo! Só pago a metade disto!

– Agora é você que está me insultando e a forma não é circunstancial. – retruquei com cara de poucos amigos. – Não pague nada... – funguei mordaz. – esqueça! Se me permite usar o telefone, gostaria de chamar um táxi.

O empresário sorriu. Novamente fechou um olho e depois o outro.

– Félix... já vi que você tem pavio curto. Isso é bom. Também tenho. Detesto puxa-sacos. É a primeira vez na minha vida que conheço um consultor honesto... E também é a primeira vez que vejo os meus cães gostarem de um estranho.

Ao que a esposa acrescentou: – o senhor deve ser boa pessoa, doutor Félix. Os cães pressentem se a pessoa tem boa índole...

Eu tive de agarrar-me à cadeira para não flutuar ali, acima da mesa, na frente da esposa e dos filhos dele. Foi o maior elogio que recebi na vida. E como sempre... não soube o que responder a ambos. Ao vê-lo assinar o papel acho que murmurei um obrigado, meio sem graça. Até hoje não estou bem certo.

Quando desci do Learjet dele no aeroporto de Congonhas, em S. Paulo, vinte e quatro horas se haviam passado. Foi quando me dei conta que esquecera de pegar de volta o papel com os honorários assinados. Nunca o pedi. Nunca dele precisei. E já vão quase oito anos... de extraordinários sucessos empresariais e financeiros para ambos, durante os quais também tive o prazer de contratar quase 12.000 pessoas, evitar a demissão de outras três mil e obrigar alguns consultores da realeza a tocar pianinho ao som da honra, moral e ética, pois sabem que eu os posso pôr de patas... no olho da rua; após a qual terão de correr aos tribunais para tentar receber honorários que nunca receberão.

Ao leitor peço que me perdoe por não revelar o nome do empresário. Além de cliente é, sobretudo, um dos pouquíssimos Amigos, com “A” maiúsculo, que fiz na minha vida... e um dos poucos honestos – realmente empresário – que existem no Brasil.

Eu não escrevi este post por causa do empresário e sim em homenagem a um homem de quem muito me orgulho ser amigo. De ter sido amigo. Seu nome era José Honório e sem ele não teria havido encontro com empresário, nem confusão de semiologias, nem a volta por cima.

Sim. José Honório, o meu trágico e estóico taxista. Um pouco antes da confusão das semiologias esquentar fui até à entrada onde me esperava e, ao dispensá-lo, entreguei-lhe todo o dinheiro que tinha. Não sei porque o fiz. Talvez porque acreditei naquele instante que fizera um grande amigo. E foi mesmo. Durante os meses e anos seguintes em que semanalmente fui a Campo Grande ele sempre me fazia rir ao perguntar quanto eu queria pagar-lhe. Tive a honra de jantar várias vezes na sua residência. Lá comi a melhor galinha ao molho pardo da minha vida. Conheci a esposa e fui padrinho dos três últimos filhos que completaram os onze que ele tanto queria.

O táxi de José Honório foi o único que usei durante quatro anos. Não teve uma só vez que não discutíssemos, no bom sentido é claro, para que ele aceitasse o dinheiro que lhe dava, do qual ele apenas separava algumas notas e me devolvia o resto. Certa feita chegou a rasgar-me o bolso superior do paletó ao tentar devolver-me o dinheiro que ele achava demais.

José Honório era um brasileiro honesto. Digno. Um amigo. Um homem de honra com caráter verdadeiramente decente. O favor que me fez, em aceitar levar-me certa noite aos cafundós do Judas, por meia dúzia de centavos, proporcionou-me o privilégio de conhecê-lo e sentir-lhe o coração enorme que possuía. Graças a esse coração eu saí da miséria e consegui sair definitivamente do Brasil para nunca mais voltar.

Este post é dedicado à sua memória, porque ontem recebi uma carta da esposa onde me informava que Honório havia sido assassinado na porta de casa por dois bandidos que lhe exigiram a féria do dia.

José Honório é mais outro inocente, outro homem honrado, assassinado por duas patacas e não há ninguém capaz de dar cabo do Lula, um pilantra desqualificado que arruinou a decência no Brasil...

É claro que não. No Brasil a confusão de semiologias é permanente. 80% dos brasileiros querem ser iguais ao Lula. Muito poucos a José Honório.


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