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terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Madrugada Brasileira

Texto de Fernando Luis Pinheiro [17/12/2007], para este blog, enviado de New York.
A Madrugada brasileira tem peculiaridades muito interessantes. Por exemplo, o Sol a odeia. Dizem! Ninguém sabe bem por quê; entretanto, todo o santo dia volta para aquecê-la, radiante e deslumbrado. Estranho, não? – Isso mais parece uma atitude de quem ama... Mas enfim. – Do mesmo modo que a idolatra, acusa-a de ser demasiado frívola; de não saber escolher as companhias; de sair com qualquer um... Quando a ela se refere, chama-a de metrômana! Até certo ponto tem razão. Castidade não é um dos seus predicados mais notáveis, embora possua carisma e qualidades insuperáveis; uma delas a inocência absoluta, incapaz de distinguir entre o bem e o mal ou de compreender os sofismas “inteligentes” que os homens filosofam. Quando ela não se entrega à lúbrica Chuva ou ao Vento proscrito sem consciência, sai pra vadiar com os Trovões, numa gritaria só; como histéricos a satisfazer a necessidade de atenção. O Sol detesta esse tipo de exibicionismo. Para exibido já basta ele. Outras vezes, acusa-a de depravada por liar-se despudoradamente com o Frio, só com uma frente fria por cima. Com o Verão ela faz pior; nem frente usa. Prefere uma aparência mais estival. Quanto muito, às vezes, se lhe dá na telha, aqui e ali rouba pedacinhos de nuvens para cobrir-se as partes pudicas... E o Céu, extasiado, desdobra-se como uma cortina para salpicá-la de estrelas e vê-la desfilar, de horizonte a horizonte, com o seu manto de luzes a esvoaçar acima da urbe.

Nos últimos anos, no Rio de Janeiro, mais que em qualquer outra cidade do Brasil, a Madrugada deu para passear de braço dado com a Morte; só para ver como são arrebatadas, – às dezenas, – as almas pobres morro acima ou as almas ricas dos turistas à beira-mar; como um voyeur necrófilo a se divertir com corpos sem vida, espalhados nas calçadas esburacadas; todos os dias. Depois cai em depressão e apaixona-se pelo primeiro que a chama de aurora boreal; que é o seu grande sonho. Contudo, ela gosta mesmo é de ser chamada de Alvinha; porém, só pelos mais íntimos. Uma espécie de privilégio pelas lembranças que eles e elas, nela deixaram.

Entretanto, digam lá o que disserem, o Silêncio é o seu melhor amigo; o mais imutável, o mais leal. Ele a entende. Defende-a por compreender-lhe os medos e os enredos. Vivencia, como se seus fossem, os segredos mais inconfessáveis que lhe doem na alma. Dizem que é por causa dessa afeição pelo Silêncio que o Sol afronta a Madrugada. Mas quem conhece tal animosidade pouco se atreve a meter o bedelho. O Sol é perigoso e muito esquentado! Como todo poltrão, é ciumento possessivo; às vezes, um assassino impiedoso. Já dona Alvinha é o oposto. É calma e dadivosa. Serena, tudo para ela está bem. É como se despossuída de querer, existisse. Nunca pede nada, nem incomoda ninguém. Suspeita-se que possua baixa auto-estima. Dá a impressão que não se valoriza, porque nunca deixa transparecer que também tem tristezas, decepções e sonhos jamais alcançados. Pura ingenuidade. É evidente, se comparada ao Sol, os dois têm personalidades antagônicas; como escuridão e claridade, por exemplo. Por isso não se bicam. E o pior,... não há diálogo entre eles. Aliás, nunca houve; mas por culpa do Sol que a assusta ao alvorecer. Quem os vê, pode até acreditar que são a demonstração inequívoca que atração entre pólos opostos não passa de crendice popular. Mas isso é balela. Entre eles, a atração que os impulsa, é a mesma que os afasta. Como uma paixão enlevada que floresce entre a timidez e o arrebato.

Se o Sol soubesse o quanto a Madrugada se vê arredada e desconexa da turbulência mundana da cidade... Que as aventuras dela são paliativos para amenizar a dor da desesperação... Também, pudera, a noite coloca-a generosamente, todos os dias, no mundo para deixá-la morrer sozinha. Já nasce com hora certa para morrer. Como é possível existir assim? E o Sol nada faz. Derivado disso, ela se vê povoada de pesadelos que não a deixam dormir ou sonha com mundos inalcançáveis... Enquanto a oeste, ele esconde-se tranqüilamente sem se preocupar com ela. Já a aconselharam a procurar o Furacão para que este lhe afaste os medos para longe; mas... no Brasil não existem furacões. Apenas Tempestades! E estas são erráticas e egocêntricas. Incapazes de ajudarem seja quem for, menos ainda a Alvinha, coitada.

Se o Sol visse como ela se enfastia com o comportamento dos brasileiros... Como a Solidão a atormenta com acusações dolorosas quando se perde nalgum antro político ou nos braços de quem apenas a usa e não a quer... Alvinha nem se distrai mais com os rapazes dos morros que se atiram balas traçantes uns aos outros... E passou a chorar de pena quando esses moços se divertem alvejando crianças e adultos dentro das próprias casas. Cansou de ser manipulada por poetas e cantores que dela desfrutam, sem cerimônia, para enaltecerem a Lua, a versos, ou as estrelas sem ao menos a romancearem. Tudo para ela virou um enorme fastio. Não lhe interessa mais os envelopes e papelotes trocados de mãos nas esquinas sem dono; nem as prostitutas e travestis a enfearem a orla marítima; nem a meninada ao relento, nos parques e becos, a fumar crack ou cheirando cola para se aquecerem ou driblarem a fome. As negociatas nas esplanadas e nos restaurantes de luxo tornaram-se mostras de curtas-metragens brasileiras, encenadas por canastrões e dirigidas por diretores sem talento. Fartou-se de esperar horas de pé para assisti-las e mais horas sentada para terminarem, sabendo que os finais são sempre os mesmos: corruptor comprando corrupto em cenas veladas com amantes no meio de chanchadas descabidas de ética e moral.

Alvinha se sente muito só! Por isso recorre ao Silêncio... quase a diário; nas horas mais insanas. O Silêncio não se importa. Sempre a amou, apesar da relação ciosa e doentia que o une à Verdade brasileira. Quando a Madrugada se interpõe nessa relação a dois, o convívio entre os três chega à promiscuidade, é certo. A Verdade brasileira não é tão ciumenta nem tão possessiva quanto o Sol; muito menos, pragmática. Tem personalidade bipolar, caráter dúbio e opção bissexual; muito diferente das suas irmãs espalhadas pelo mundo. Nunca deixa o Silêncio; nem mesmo quando a Alvinha o toma para ela. A Lua Invídia, sofre do complexo de perseguição e mania de superioridade; não lhes dá trégua. Conta tudo ao Sol e deixa-o de núcleo incendiado. É uma língua de trapo. Vive espalhando por aí o que o Silêncio e a Verdade fazem na Madrugada. Mas ela não presta atenção que é por causa da Madrugada que a Verdade goza no Silêncio. Somente com as duas ele se contextualiza com a sua verdadeira essência. Que a Verdade se impõe na Madrugada... Isso é fato. Um tanto sórdido, mas é.

Entretanto, a Lua pode ser bisbilhoteira e intriguista, mas não mente. Quando a Madrugada surge, a Verdade brasileira revela-se tal como é: sádica! Cruel em muitos instantes. Às vezes contraditória, prolixa e mitômana. Mas mesmo assim, nunca deixa o Silêncio falar. A Verdade sempre o cala com zelo grudando-se aos lábios dele. Ao Silêncio só lhe resta consentir e tentar suavizar a Verdade quando chega a Madrugada.


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