Translate

sábado, 21 de junho de 2008

1 – Amor epistolar.

Eu sei que tamanho, beleza e fortuna fazem parte do regesto social e são elementos do espicilégio humano. Então, como é possível levarmos dentro de nós a alma do outro se nenhum de nós atende a tais atributos e quando nos vemos nos pomos a dizer adeus?

Ouve-me: tem certos eventos que nunca são narrados nem escritos, mas tão somente guardados na memória... – Ou na alma, como nos guardamos um ao outro. – Alguns possuem cheiro, tato... como se ao recordá-los pudéssemos vivê-los do mesmo modo que aconteceram. Não importam os anos nem a distância; tampouco as recordações, sejam elas boas ou más. Na Lua nova preencho o teu pensamento; na cheia, tu em mim transbordas. Sempre foi assim desde aquele primeiro dia.

Quando o assunto é amor, Maquiavel se interpõe entre nós e nos possui com a sua dialética obscura e paradoxos grotescos. Só o que fazemos é perder a autoconsciência do quanto nos queremos, apesar da distância que se interpõe entre nós... a cada dia... a cada mês... a cada ano. Pessoas que se amam não devem viver juntas, sabias? Um sempre acaba levando o outro à loucura; idealistas não convivem bem juntos. Não importa o quanto como deuses nos tratemos um ao outro, sempre acabamos por nos comportar como desprezíveis mortais. Tu não podes punir-me com o teu amor, nem eu reprimir os teus sentimentos.

Ninguém pode ser feliz sem ser punido? – Deverias querer viver de amor e não morrer de amor. Ele jamais foi uma melancia onde cada um sacou a sua talhada e depois cuspiu as sementes. Lamento que te deixes levar pela devassidão que apodrece a cada instante o Brasil. Entendes agora porque não posso viver aí?

Sabemos tanto sobre filosofia, política e ciência, porém, sabemos tão pouco um sobre o outro. Vens e vais como um sopro, uma aragem que me acaricia o rosto. Eu sei que és um ser humano. E eu o que sou? Quando alguém sofre de ciúmes, pouco se pode fazer a respeito. É um ralo por onde todos os créditos se esvaem para nos conduzir à falência e ainda nos coloca em débito com a mediocridade. É bom confiar em alguém de vez em quando. Deverias experimentar de tempos em tempos. Talvez fora do Brasil. Quantas noites nos convencemos a passá-las juntos? E sempre temos a sensação que esquecemos alguma coisa...

Só dentro do quarto parecíamos ser felizes? Nada foi esquecido. Somos a incontestabilidade viva da paixão que nos une... Que nos guarda como um anjo da guarda... apesar da distância e do frio da minha ermita. Eu me tolero e aceito como és. Sem restrições. Não foi sempre assim?

Claro que tenho fé no futuro; continuo a ser o mesmo sonhador. As ilusões não têm defeitos e servem para nos fazer companhia. A eternidade nos alcançou no começo do nosso inverno e eu me senti abençoado naquele pequeno apartamento com colchão molenga e travesseiros manchados... Pensei que nesse antro, apesar de emprestado, havíamos enterrado as sementes da tragédia e as mágoas dos nossos passados. Pão italiano e queijo gouda jamais terão sabores tão extraordinários como naquele fim de tarde. É certo que o teu corpo sempre me inspirou milhares de promessas. Do mesmo modo que o teu rosto me deu mil interrogações.

Complexa eu sei que és. Não somos todos? Crês tu que a minha bagagem é mais leve que a tua? Que só as tuas esperanças e sonhos se perderam ao longo de todos estes anos? Trinta e cinco pontes cruzam o Sena em Paris... Cada uma atravessei e em nenhuma delas te vi à minha espera. Em nenhuma delas, hoje sei, sequer estiveste. Se frio passei em tantas caminhadas, pelo menos fico contente que o calor tenha-te aninhado e alijado do pérfido afável aperto de mão. Seria banal demais ter só Paris para lembrar.

Idolatrarmo-nos só nos torna mais obscuros. Deixemos que o obsceno se transforme em sagrado; um mantra a ser rezado. Se antes tinhas o frescor de quem não conhecia o amor físico, hoje possuis, na beleza do teu sorriso, a maturidade da realização sexual. Aproveita-a sem culpas, sem medo. O êxtase de cada manhã só de ti depende agora. Tu tens razão: as coisas só se tornam importantes conforme o nosso estado de espírito.

Que mais queres tu de mim? Incandescer-me como uma ilusão que não és? A tua vagina sempre foi para mim uma flor em ninho e uma caverna voraz cheia de mistérios e sensações. Ininterruptamente foi inebriante tocar-te o clitóris com a língua e perceber a avalanche de sabores e o sem fim de nuances das fragrâncias que me enlouqueciam e faziam delirar... Vieste aqui para me humilhar... Apenas me deixaste mais infeliz do que quando saías correndo do quarto onde me amavas... e eu te amei. Idéias e moral não são peso para ti, eu sei. Sentimentos do desconhecido só concernem aos outros. Se tu própria fazes as escolhas sozinha, como podes culpar-me ou eu em ti confiar?

Por ter fé no futuro não posso voltar enquanto acredito; enquanto ainda tenho alma.


Comentários: Para enviar por E-mail clique «AQUI»



x