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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Filmes brasileiros

Em pouco mais de meio século de vida no Brasil nunca, mas nunca mesmo, assisti a um filme nacional. 

Tampouco os que se assomaram à soleira da porta do Oscar; apesar do jornalismo bombástico e megalômano-onírico feito em torno deles.

De menino ouvia o meu avô dizer que não valia a pena ver filmes brasileiros. Já adulto, em conversas amenas, alguns casais amigos reforçavam essa opinião. 


Colegas de trabalho e da universidade pareciam ecos de tais apreciações: a qualidade era ruim; as performances dos atores piores ainda. Sem falar na sonorização, roteiros, fotografia, etc., que eram de péssima categoria. 

Sempre fui um ouvinte apático dessas manifestações e nunca um interlocutor curioso. Era o tipo de assunto que não me interessava.

Cabe dizer que tenho amigos que opinam exatamente o contrário, mas a recomendação avoenga prevalecia inexplicavelmente e nenhuma credibilidade abonava a essas asserções. Porque isso me ficou gravado, sempre optei por ver filmes de outras nacionalidades. Geralmente a reboque de algum convite, é bem verdade.

No terceiro estágio de gestação desta crônica surpreendi-me ao descobrir que jamais me preocupara em saber se tais afirmações, contra e a favor da cinematografia pátria, são questionáveis. Se têm fundamento. Se revelam o tipo drástico-imparagonável-burguês: “filme brasileiro é ruim e fim de papo”; ou o estilo da esquerda-festiva-petista: “filme brasileiro melhorou muito e há que se prestigiar o cinema nacional”. Na verdade nunca formei opinião nem instado a dá-la me vi alguma vez. 


O mesmo vale dizer para filmes de outras nacionalidades. Todos os que vi ative-me somente ao conteúdo, à estória em si, aos personagens e nunca à origem, nem aos nomes dos diretores ou dos atores. Sou péssimo para nomes. 

Nunca me perguntem qual ator fez tal filme; o mais provável é eu não saiba ou troque alhos por bugalhos.

Não sou um cinéfilo de carteirinha, confesso. Nem espectador constante de DVDs ou de televisão. Talvez esta seja a causa de não me sentir alienado ou mentecapto como a maioria das pessoas que me rodeavam e convivia no Brasil. Sou mais chegado a um bom livro e a saraus entre amigos. 


Pela profissão que exerço preciso ler toneladas de papel. Quando jovem aprendi a tocar violino. Já adulto, a martelar o piano. Portanto, sobra-me pouco tempo para cinema; embora goste e muito. Infelizmente, quando forço a escolha de um filme, ninguém gosta. 

Só eu. 

Quando são os outros, freqüentemente não entendo a metade; na outra durmo. Obviamente há algumas exceções.

Entretanto, maquiavelicamente como lerão adiante, nada me diverte mais do que sair de um cinema, em cujo filme não dormi e tampouco entendi, e escutar alguém surpreender-se por eu não ter compreendido nada. 


Às vezes até faço de propósito; só para provocar. Com freqüência, porém, a minha incompreensão é genuína. Especialmente das fitas com toques fellinianos, noir francês ou enredo niilista-confuso. 

Aquelas onde o diretor mete os pés pelas mãos e, a certa altura, cansado de criticar a sociedade, coloca o “The End” no último retângulo do celulóide, deixando para mentes telepáticas a conclusão da sua obra.

Tenho duas amigas, com doutorado colado na Panthéon-Sorbonne, que adoram explicar-me a rebimboca da parafuseta: – as intenções contrastantes das experiências externas e cognitivas por trás do desejo subjetivo do diretor. 


Entenderam? 

Sobretudo quando o enredo versa pelo lado doentio do relacionamento dos personagens; cujas performances acho inexplicáveis ou bizarras e elas dignas de um Oscar. Eu me divirto. Ambas sabem disso. 

A insistência delas advém da necessidade de exercitarem os próprios neurônios. Fazer o quê? As duas acham que sou uma espécie de esteira ergométrica para o aprimoramento do intelecto delas. Cada um acredita no que quer. Eu, muito educado, dedico-me a ouvir e a fazer cara de interessado. Elas dizem que faço perguntas muito interessantes. 

É nisso que dá ser um inerme.

É aqui que Maquiavel baixa e se incorpora em mim. Maria del Pilar e Maria da Graça, espanhola e brasileira respectivamente, fazem parte das minhas fantasias mais recônditas. São duas belíssimas mulheres, [bota belíssima nisso]. 


Só as vozes já me induzem a delíquios de amor; a uma viagem ao Nirvana com a certeza de ter ganho na mega-sena. São dignas de serem acomodadas, cuidadosamente nuas, dentro de uma campânula de cristal e o sujeito passar-se a vida inteira a admirá-las. 

Ah... se não fosse a minha timidez...

Pois bem, deixando o imaginário de lado, na minha despedida do Brasil, Maria da Graça, vale o pleonasmo, agraciou-me com graça infinita, que só ela tem, uma coletânea de 50 filmes brasileiros; todos DVDs com selo de origem, muito bem acondicionados num extraordinário estojo em mogno vermelho. 


Lindo! 

Recebi-o pouco antes de sair para o aeroporto, com a recomendação de ser usado quando sentisse saudades do Brasil. Logo a minha imaginação subentendeu: “pra quando sentisse saudades dela”.

No Check-in da companhia aérea foi um “Deus nos acuda”. Eu não queria despachar a caixa; não estava embalada e já sentia saudades “dela”. Queria levá-la comigo. 


Na minha mão; bem junto a mim. 

No contraponto, a mocinha imberbe no balcão não permitia o embarque. O volume era grande, pesado; fora dos padrões. – Como podia uma garota, com um cueiro garrido pendurado ao pescoço, proibir-me de levar a minha paixão? 

Existe alguma que seja pequena ou padronizada? – Adverti-a!

Perante tal insolência ameacei apresentar queixa à direção da empresa. Com olhar entrecerrado e malévolo, a infeliz avisou-me que a minha paixão, digo, a caixa, em caso de acidente, poderia machucar algum passageiro. 

Que exagerada! – Respondi-lhe.

Como se um machucadozinho qualquer fizesse diferença num acidente aéreo. – Referia-me à paixão, não à caixa.

O bom de se viajar numa companhia Suíça, hoje propriedade dos alemães, é que o cliente é tratado com respeito e compostura. – Huummm... apenas dei sorte.

Um supervisor simpático e bem emasculado dispôs-se a ajudar-me. Nem me importei que me alisasse o braço uma duas vezes e sorrisse, insinuante, outras cinco ou seis. Ignoro por que fez isso comigo. Mas eu estava com uma jaqueta de couro bem grossa. 


Mesmo assim, a custo, reprimi a náusea. 

Em boa hora. 

Isso me valeu o embarque, a paixão embalada em cinqüenta filmes e uma imaginação fértil com saudades múltiplas da Maria da Graça. 

Que gracinha! Como fora deliciosamente insinuante...

No meio da viagem, a não sei quantos metros ou quilômetros de altitude, lembrei-me da parábola da Raposa e as uvas. Por que cargas d’água me ocorreu, não sei. Tenho esses desvarios nos vôos. Por causa do medo, suponho. 


O certo é que transformei a Maria da Graça numa uva bem verde e olvidei a paixão que voltou a ser caixa da melhor cinematografia brasileira. Tanto esqueci que desembarquei e nem lembrei de pegá-la. Culpa do meu avô. Não nego a minha origem. 

Fui para casa e o tempo passou.

Um belo dia, quase sessenta após a minha chegada, Maria del Pilar veio visitar-me. Ao vê-la na minha porta, por osmose, lembrei-me da Graça e dos 50 filmes. 


Que desgraça. 

Entrei em pânico. 

Cortinas de auto-censura abateram-se sobre mim. Ondas de contrição deixaram-me em farrapos; inclusive por ter culpado o meu avô. Que catarse vivi. Que volúvel sou. E distraído também. A despeito do esforço pessoal o ranço da origem permanece e dele não consigo livrar-me.

Maria, assim a chamo para a diferenciar da Graça, não é só boa em explicar o incompreensível; é-o em muitos aspectos... – e que aspectos! 


Após a minha confissão quase em prantos, imediatamente ela se propôs a ajudar-me na recuperação da Graça. Da caixa, digo! Sou péssimo para reclamações. Acabo sempre por chutar o pau da barraca.

Com essa boa-vontade as uvas haviam amadurecido por encanto. Uma das Marias estava na minha casa. Por fim! A dois passos das estrelas. 


Que companhia mais agradável haveria para assistir a todos os cinqüenta filmes brasileiros? 

Eu já imaginava as reprises. Sim... as reprises, claro! 

Certamente haveria de ter várias, imaginei. Alguns dos filmes não entenderia bulhufas e precisariam ser repassados... Muitas explicações seriam necessárias para um retardado como eu. 

De preferência pelo método Braille; única maneira de entendê-las a contento.

Não dizem que a cinematografia brasileira inspira-se nos moldes avangard franceses? Isso me disseram. Parece que estilo original não possui e as direções são, quase sempre, plágios de cineastas europeus. 


Portanto, já dava por certo que não entenderia nada. 

E se entendimento algum adviesse, negá-lo-ia a pés juntos.

Novamente amofinei-me, de viva voz, por ter sido tão relapso. No fundo, confesso enrubescido, era tudo o contrário. 


Exultava de alegria. 

Não por ter a oportunidade de recuperar algo, cujo pensamento perdera em alguma nuvem sobre o atlântico. Maria estava em minha casa pronta para explicar-me, tim-tim por tim-tim, o que eu não entendesse nos filmes brasileiros.

Para mitigar a culpa aparente, até exagerei um pouco. Insisti em pôr à disposição de Maria del Pilar todos os recursos que dispunha para ajudá-la a me ajudar. Isto é: o meu carro e motorista para levá-la à empresa aérea a fim de descobrir onde estava a cinematografia brasileira e dinheiro para pagar o que fosse necessário. 


Ela recusou o dinheiro e aceitou o motorista. 

Que simpática. Que mulher fina. 

De jeito nenhum atrevi-me a acompanhá-la. Com certeza correria o risco de ensombrá-la. Ademais, sou péssimo e muito preguiçoso para resolver esse tipo de assunto e como ela mostrou tamanha boa-vontade... 

Ela é ótima, afoita, vivaz e tão, tão, tão...

Assim que Maria saiu, imediatamente dei ordens expressas e urgentes à minha governanta para preparar um jantar de deuses. De deuses com todos os anjos reunidos, sublinhei. 


Ah, e que não esquecesse de colocar no congelador uma garrafa fechada do licor de champanhe que reservo para visitas celestiais. 

Estremeci ao perceber que Maquiavel já estava grudado, pronto para se incorporar. Era uma sexta-feira. A adrenalina subiu e a testosterona entrou em ebulição. Corri para tomar um banho, perfumar-me todo e vestir uma roupa que me tirasse vinte anos de cima.

Morar na Europa com filhos adolescentes é uma delícia. Os pimpolhos sempre têm amiguinhos nalgum país ao lado, cuja visita demora pelo menos dois dias; se não três. 


Ninguém precisa ser adivinho para saber que logo convoquei o conselho familiar, – eu e os meus dois filhos, – para informá-los que havia pensado bem e resolvera autorizar a ida deles para Londres. 

Dois dias antes haviam-me pedido isso. Imbecilmente, dissera que não. 

Que idiota. 

Que mal havia em deixá-los ir para casa dos amigos deles, cujos pais conheço há mais de trinta anos? 

Ainda bem que recuperei a razão a tempo. Mas logo me arrependi. 

Mais que rápidos, os dois espertalhões aproveitaram-se do meu remorso mortificado para me arrancarem mil euros, cada um, para “alguma despesinha que precisassem durante o fim de semana”. Pode?

O xingamento mental foi ininterrupto; contudo sorri a meias. Na idade deles não ganhava isso nem num ano de trabalho de sol a sol. 


Mas tenho um coração mole; pura manteiga derretida. 

Sou incapaz de recusar-lhes seja o que for... 

Nem me preocupei que na casa desses amigos tem cavalos e o mais novo já quebrou uma perna na caída de um deles. Até os ajudei a fazer as malas; vejam só o bom pai que sou. 

Não gosto de me gabar, mas às vezes a verdade precisa ser dita. Quando chamei um táxi para levá-los ao aeroporto ficaram um tanto surpresos; mais ainda por não acompanhá-los, como habitualmente faço. Só que eles não contaram com a minha astúcia.

No ínterim das ordens à governanta, banho tomado e a convocação do conselho familiar eu havia ligado para a minha secretária. 


Sob pena de despedi-la na segunda feira, instei-a a personificar-se na minha casa, em menos de meia hora, para levar os garotos ao aeroporto. Um minuto além disso já seria causa suficiente para a demissão. 

Tadinha dela. Apareceu-me na porta vinte e cinco minutos depois fumegando pelas narinas e com o cabelo todo molhado. Alguns pingos de neve penduravam-se-lhe pelas pontas. Acho que a arranquei do meio do banho.

Que chefe mais déspota eu sou... 


Na hora jurei por todos os santos que nunca mais faria uma coisa dessas. 

Bom... melhor não exagerar. Maria Del Pilar telefonou-me quarta-feira passada para avisar que vem passar uns dias em minha casa. Quer ver os filmes pelos quais sofreu três horas no aeroporto para recuperá-los e que acabou por não os assistir... 

Que coisa. Vou ter que recebê-la. Eu não sei dizer não. Além disso tenho vontade de ver um filme...

Deuses do universo, agora me lembro... Preciso parar de escrever. Lamento não poder entrar nos detalhes dos filmes brasileiros nem narrar aqui a minha opinião. Mas quem se importa. Eu ainda não vi nenhum, mas o estojo está perfeito.
Hoje já é sexta-feira outra vez. Maria deve chegar dentro de algumas horas e eu estou desejoso de ver os filmes. 

Juro que estou! 

Doidinho. 

Só preciso subir ao quarto dos garotos para saber que programa planejaram para o fim de semana. Ainda nem se manifestaram. 

Não quero que se sintam acanhados para visitarem algum amigo e tenham medo que eu não autorize. 

Que bobagem. 

Vou tomar a iniciativa; ser um pai presente; pró-ativo...

Pretendo demonstrar-lhes que sou o melhor pai que eles poderiam ter. Quero que se sintam orgulhosos de mim. Por eles vivo e razão do meu viver são. Sou um coração de manteiga mesmo. 

Por se acaso, vou esvaziar a carteira.


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