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sábado, 1 de setembro de 2007

Para ser vagabundo

Texto de Orlando Tosetto Junior - São Paulo

Para ser vagabundo é preciso perder toda vontade de correr. Vagabundo não corre nunca, nem pela própria saúde. Vagabundo ri da tal "geração saúde" - porque vagabundo não tem saúde, nem quer. 


Vagabundo quer vagabundar: engordar, andar devagar, espiar tudo e não ter que fazer nada. Morte de vagabundo é sempre de infarte, em parte porque coração de vagabundo trabalha mais: bate menos, mas sente as coisas que só ele.

Para ser vagabundo é preciso tempo. O fazer nada só faz sentido ao longo do tempo. Tempo de esperar aparecer alguém que faça companhia; tempo de esperar uma mulher bonita passar; tempo de gelar o chope; tempo de sair o sol; tempo de vir um ocaso arrebatador; tempo da gente lembrar de um motivo para ficar triste; tempo daquele perfume lá da esquina vir se arrastando até o nosso nariz; tempo da gente achar que não vai morrer nunca, e ao mesmo tempo achar que não é muito certo continuar vivo. 


Tempo também pra pensar um monte de besteiras. Idéia louca quem tem é vagabundo. Quem senão vagabundo ia inventar de subir escada rolante que desce?

Para ser vagabundo é preciso olho. Porque vagabundo olha tudo. Vagabundo é como coruja, presta uma atenção danada às coisas. Tem que ter olho de águia para ver, antes de todo mundo, aquela bunda, aquele sorriso, aquele atropelamento, aquela pessoa desabando na calçada vítima de ataque, pileque ou tristeza. Olho aberto pra tudo, especialmente pras curvas do vento.

Para ser vagabundo é preciso não ter programa. Já repararam que vagabundo não vai a lugar nenhum? 


Vagabundo não viu o último arrasa-quarteirão; não leu o último best-seller; não foi àquela praia em que todo mundo está indo; não viu o tal programa de TV que todos estão vendo, nem ouviu o último sucesso que todo mundo está cantando. Quando o vagabundo chega lá, já mudou tudo. 

O vagabundo está sempre low-to-date. E quando a gente fala, faz cara de sono. É por isso que o vagabundo parece atemporal. Vagabundo está sempre com o assunto atrasado. O vagabundo, coitado, nasceu "da antiga".

Aliás, pra ser vagabundo é preciso até ser contra as vogas. Nem que por letargia. 


Hoje em dia, por exemplo, em que todo mundo está se matando para aprender a gerenciar, o vagabundo é um desgovernado. 

Quando todos correm pra arrumar as coisas em seus lugares, o vagabundo perde os chinelos. Na época da internet, ele ouve rádio (na época do rádio, lia jornal; na do jornal, repassava fofocas). 

Quando todos andam limpos e perfumados, o vagabundo esquece banhos e perde dentes. Quando todos têm carro, vagabundo continua a pé, até como desculpa pra não ir.

Pra ser vagabundo é preciso sorrir pouco. Gente alegre trabalha, essa é a triste verdade. Assim como os sofredores, os patéticos, os Antígonos e Hamletos. Gargalhou ou se matou, pode conferir: é trabalhador. Já o vagabundo fica flanando, tristinho, se abanando.

Pra ser vagabundo é preciso não ter convicção nenhuma, nem a da vagabundagem - a ela o vagabundo chega como um náufrago, arrastado. Pro vagabundo tudo sempre pode ser. O vagabundo acha difícil, mas não nega; acha que dá, mas também não afirma. Com vagabundo é tudo na base do "veremos".

Pra ser vagabundo é preciso amar demais uma mulher, uma mulher com quem ele não está.


Vagabundo sofre e repuxa a boca por amor. Acende cigarro pensando nela; entorna álcool pensando nela; só vê poente pensando nela. 

Quando acontece dela chegar, todo mundo olha pro vagabundo. Depois que ela vai, ele diz: "não é essa, é outra". E segue sofrendo.

Pra ser vagabundo é preciso sempre saber o que fazer. Planejar o nada, e, quando se levantar, ter destino certo. A casa, a rua, a vida, a morte, a privada. Vagabundo é meticuloso na mijada descansada, é científico no subir o zíper, é religioso na olhada desconsolada e comprida que dá ao espelho.

Pra ser vagabundo é preciso, fundamentalmente, não se deixar arrastar. O negócio de vagabundo é ficar. Que vão os outros, que vão pra lá duma vez, que atrás deles o vagabundo manda o olhar, um suspiro, um sei lá o quê. Mas ir, não vai.

Enfim, pra ser vagabundo é preciso observar rigidamente o protocolo. Um protocolo fácil de saída, mas melancólico ao longo das tardes empilhadas. 


É preciso um heroísmo, uma humildade de santo, uma vocação tenaz de anonimato. Porque vagabundo só é exaltado pelo amigo famoso, aquele que trabalha e diz pro vagabundo: "certo está você, viu?". Ele vê, vagabundo vê. E, olho perdido no horizonte, vagabundo sonha com a tarde perfeita, o vento perfeito, a súbita revelação da verdade eclesiástica: Deus põe, o homem dispõe, e o vagabundo desfruta. E arrasta os passos pelo mundo, humano como todos, vivo como todos, sem esperanças como todos.

Pra ser vagabundo é preciso ser gente.


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